Dom Quixote das Crianças

Escrita por Monteiro Lobato

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Capítulo 1


Emília descobre Dom Quixote

 

Emília estava na sala de Dona Benta, mexendo nos livros. Seu gosto era descobrir novidades — livros de figura. Mas como fosse muito pequenina, só alcançava os da prateleira de baixo. Para alcançar os da segunda, tinha de subir numa cadeira. E os da terceira e quarta, esses ela via com os olhos e lambia com a testa. Por isso mesmo eram os que mais a interessavam. Sobretudo uns enormes.

Uma vez a pestinha fez o Visconde levar para lá uma escada — certa vez em que Dona Benta e os netos haviam saído de visita ao compadre Teodorico.

Foi um trabalho enorme levar para lá a escadinha. O coitado do Visconde suou, porque Emília, embora o ajudasse, ajudava-o enganosamente, fazendo que todo o peso ficasse do lado dele. Afinal a escada foi posta junto à estante, e Emília subiu.

— Segure bem firme, Visconde — disse ela ao chegar ao meio. — Se a escada escorregar e eu cair você me paga!

— Não tenha nenhum receio, Senhora Marquesa. Estou aqui agarrado nos pés da escada como uma verdadeira raiz de árvore. Suba sossegada.

Emília subiu. Alcançou os livrões e pôde ler o título. Era o Dom Quixote de Ia Mancha, em dois volumes enormíssimos e pesadíssimos. Por mais que ela fizesse não conseguiu nem movê-los do lugar.

— Visconde — disse a travessa criatura, limpando o suorzinho que lhe pingava da testa —, parece que estes livros criaram raiz. Sem enxada não vai. Temos de arrancá-los como se arranca árvore. Vá buscar uma enxada.

— Se a senhora me permite uma opinião, direi que o caso não é de enxada e sim de alavanca. Dona Benta já explicou que a alavanca é uma máquina própria para levantar pesos. Com a alavanca o homem multiplica a força do braço, conseguindo erguer pedras e outras coisas pesadíssimas.

Emília olhava para os livrões.

— Bom — disse ela. — A alavanca multiplica a força do braço dos homens, sei disso. Mas será que também multiplica a força do braço das bonecas?

— Experimente — respondeu o Visconde. — É experimentando que se fazem descobertas. Foi experimentando que Edison descobriu o fonógrafo.

— Deixe Edison em paz e traga a alavanca. O Visconde trouxe um cabo de vassoura.

— Está bem certo de que isto é alavanca, senhor sabugo?

— Garanto que é. Experimente. Se a senhora enfiar a ponta do cabo da vassoura naquele vão e fizer uma forcinha, o livro move-se. Experimente!

A boneca fez a experiência. Enfiou o cabo da vassoura num vão, fez força, e o livro, que parecia ter raízes, moveu-se três dedos.

— Viva! Viva! — berrou a diabinha. — É alavanca, sim, Visconde, e das legítimas! Desta vez eu tiro a prosa deste peso.

E tirou mesmo. Tanto fez que o livrão se foi deslocando para a beirada da estante, agora dois dedos, agora mais dois dedos, até que… Brolorotachabum! — despencou lá de cima, arrastando em sua queda a escada, a Emília e o cabo de vassoura, tudo bem em cima do pobre Visconde.

A barulheira fez Tia Nastácia vir correndo da cozinha.

— Nossa Senhora! Que terremoto será aquilo? — exclamara ela. E ao entrar na sala, vendo o desastre: — Será possível, santo Deus? A terra estará tremendo?

— Foi a alavanca — explicou Emília. — A alavanca arrancou o livrão lá de cima e o derrubou em cima do Visconde...

— Em cima do Visconde, Emília? Então o pobre do Visconde está debaixo deste colosso?

— Está sim — tão achatadinho que nem percebe. Malvada alavanca.

Levantando o livrão, a cozinheira viu que realmente o Visconde estava embaixo — mas completamente achatado.

— Credo! — exclamou. — Parece um bolo de massa que a gente senta em cima. Será que morreu?

Sacudiu-o, virou-o dum lado para outro, gritou-lhe ao ouvido.

Nada. O Visconde não dava o menor sinal de vida. Só deixava sair de si um caldinho.

— É o caldo da ciência — observou Emília. — Vou guardá-lo num vidro. Pode servir para alguma coisa.

— E agora? — disse a cozinheira, de mãos na cintura, com os olhos naquele achatamento.

— Agora — respondeu a boneca — nós deixamos ele como está para ver como fica. Pedrinho logo chega e dá um arranjo. Pode ir cuidar do seu fogão.

Emília estava ansiosa por ver as figuras do Dom Quixote. Como fosse uma boneca sem coração, era-lhe indiferente que o Visconde ficasse por ali naquele triste estado. Além disso, tinha a certeza de que, dum jeito ou de outro, Pedrinho o consertaria. Criaturas de sabugo têm essa vantagem. São consertáveis, como os relógios, as máquinas de costura e as chaleiras que ficam com buraquinhos. Mas Tia Nastácia, sempre de mãos à cintura, não tirava os olhos do pobre sabuguinho.

— Chega! — berrou Emília. — Não enjoe. Vá cuidar das suas panelas — e foi empurrando Nastácia até a porta da cozinha. Em seguida voltou correndo para o livro.

Abriu-o e leu os dizeres da primeira página.

 

O ENGENHOSO FIDALGO
DOM QUIXOTE DE LA MANCHA
POR
MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA

 

— Saavedra! — exclamou. — Para que estes dois aa aqui, se um só faz o mesmo efeito? — e, procurando um lápis, riscou o segundo a.

Feita a correção, começou a folhear o livro. Que beleza! Estava cheio de enormes gravuras dum tal Gustave Doré, sujeito que sabia desenhar muito bem. A primeira gravura representava um homem magro e alto, sentado numa cadeira que mais parecia trono, com um livro na mão e a espada erguida na outra. Em redor, pelo chão e pelo ar, havia de tudo: dragões, cavaleiros, damas, curingas e até ratinhos.

Emília examinou minuciosamente a gravura, pensando lá consigo que se aqueles ratinhos estavam ali era porque Doré se esquecera de desenhar um gato.

Nisto ouviu barulho na varanda. Dona Benta e os meninos vinham entrando.

— Que é isso, Emília? — indagou a velha, ao dar com o Dom Quixote esparramado no chão. — Quem desceu esse livro?

— Foi a alavanca — respondeu a boneca. — Artes do Senhor Visconde, e por isso mesmo ficou mais chato que um bolo que a gente senta em cima. E mudo. Parece que morreu.

Narizinho e Pedrinho correram a examinar o Visconde.

— Coitado! — exclamou a menina. — Um Visconde tão bom, tão científico. Veja, Pedrinho, se dá um jeito nele.

— O caldo da ciência eu salvei — disse Emília, mostrando um vidro de homeopatia.

Tia Nastácia veio da cozinha explicar o desastre.

— Mas de que modo o livro caiu lá de cima? — quis saber Dona Benta.

— Não sei, sinhá. Ouvi um barulho. Corri e achei o livro no chão. Quando levantei o livro, encontrei embaixo uma chatura: era o pobre Visconde. Nem gemia. Estava morto duma vez...

— Mas como foi que o livro caiu lá de cima?

— Não sei, sinhá. O que vi foi uma escada no chão, o livro em cima do Visconde e um cabo de vassoura. Diz a Emília que foi não sei quê duma tal alavanca...

— Hum! Hum! — rosnou Dona Benta, cravando os olhos na boneca. — Estou compreendendo tudo. Alavanca é ela...

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