Dom Quixote das Crianças

Escrita por Monteiro Lobato

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Capítulo 2


Dona Benta começa a ler o livro

 

O que não tem remédio, remediado está. O Visconde ficou encostado a um canto, e Dona Benta, na noite desse mesmo dia, começou a ler para os meninos a história do engenhoso fidalgo da Mancha. Como fosse livro grande demais, um verdadeiro trambolho, aí do peso de uma arroba, Pedrinho teve de fazer uma armação de tábuas que servisse de suporte. Diante daquela imensidade, sentou-se Dona Benta, com a criançada em redor.

— Este livro — disse ela — é um dos mais famosos do mundo inteiro. Foi escrito pelo grande Miguel de Cervantes Saavedra... Quem riscou o segundo a de Saavedra?

— Fui eu — disse Emília.

— Por quê?

— Porque sou inimiga pessoal da tal ortografia velha coroca que complica a vida da gente com coisas inúteis. Se um a diz tudo, para que dois?

— Mas você devia respeitar esta edição, que é rara e preciosa. Tenha lá as ideias que quiser, mas acate a propriedade alheia. Esta edição foi feita em Portugal há muitos anos. Nela aparece a obra de Cervantes traduzida pelo famoso Visconde de Castilho e pelo Visconde de Azevedo.

— Ah! — exclamou Emília. — Então foi por isso que o nosso Visconde mexeu nele — para conhecer a linguagem dos seus colegas viscondes. Que raça abundante! Três só aqui nesta salinha.

Dona Benta continuou:

— O Visconde de Castilho foi dos maiores escritores da língua portuguesa. É considerado um dos melhores clássicos, isto é, um dos que escreveram em estilo mais perfeito. Quem quiser saber o português a fundo, deve lê-lo — e também Herculano, Camilo e outros.

— O português perfeito é melhor que o imperfeito, vovó? — indagou Narizinho.

— Está claro, minha filha. Uma coisa, se é perfeita, está claro que é melhor que uma imperfeita. Essa pergunta até parece da Emília.

— Então comece — pediu Pedrinho. E Dona Benta começou a ler:

— "Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga e galgo corredor".

— Ché! — exclamou Emília. — Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua, até logo! Vou brincar de esconder com o Quindim. Lança em cabido, adarga antiga, galgo corredor... Não entendo essas viscondadas, não...

— Pois eu entendo — disse Pedrinho. — Lança em cabido quer dizer lança pendurada em cabido; galgo corredor é cachorro magro que corre e a adarga antiga é... é...

— Engasgou! — disse Emília. — Eu confesso que não entendo nada. Lança em cabido! Pois se lança é um pedaço de pau com um chuço na ponta, pode ser "lança atrás da porta", "lança no canto" — mas "no cabido", uma ova! Cabido é de pendurar coisas, e pedaço de pau a gente encosta, não pendura. Sabem que mais, meus queridos amigos? Vou brincar de esconder com o Quindim...

— Meus filhos — disse Dona Benta —, esta obra está escrita em alto estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se tornou clássica. Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a história com palavras minhas.

— Isso! — berrou Emília. — Com palavras suas e de Tia Nastácia e minhas também — e de Narizinho — e de Pedrinho — e de Rabicó. Os viscondes que falem arrevesado lá entre eles. Nós que não somos viscondes nem viscondessas, queremos estilo de clara de ovo, bem transparentinho, que não dê trabalho para ser entendido. Comece.

E Dona Benta começou, da moda dela:

— Em certa aldeia da Mancha (que é um pedaço da Espanha), vivia um fidalgo, aí duns cinquenta anos, dos que têm lança atrás da porta, adarga antiga, isto é, escudo de couro, e cachorro magro no quintal — cachorro de caça.

— Para que a lança e o escudo? — quis saber Emília.

— Era sinal de que esse fidalgo pertencia a uma velha linhagem de nobres, dos que antigamente, na Idade Média, usavam armaduras de ferro e se dedicavam à caça como sendo a mais nobre das ocupações.

— Vagabundos é que eles eram! — exclamou a boneca.

— Não atrapalhe, Emília — murmurou Narizinho. — Continue, vovó.

Dona Benta continuou:

— Morava em companhia duma sobrinha de vinte anos e duma ama de quarenta. Chamava-se Dom Quixote. Era magro, alto, muito madrugador e amigo da caça. E mais amigo de ler. Só lia, porém, uma qualidade de livros — os de cavalaria.

— Eu sei o que é cavalaria — disse Pedrinho. — Depois das Cruzadas, a gente da Europa ficou de cabeça tonta e com mania de guerrear. Os fidalgos andavam vestidos de armaduras de ferro, capacete na cabeça e escudo no braço, com grandes lanças e espadas. Montavam em cavalos que eles diziam ser corcéis e saíam pelo mundo espetando gente, abrindo mouros pelo meio com espadas medonhas. As proezas que faziam eram de arrepiar os cabelos. Já li a história de Carlos Magno e os Doze Pares de França..

— Isso mesmo — confirmou Dona Benta. — Eram os cavaleiros andantes. Depois de lermos o Dom Quixote havemos de procurar o Orlando furioso, do célebre poeta italiano Ariosto — e vocês vão ver que coisa tremenda eram os tais cavaleiros andantes.

— Por que se chamavam assim? — indagou a menina.

— Porque viviam a cavalo, sempre a correr mundo atrás de aventuras. E tais e tantas foram suas aventuras, que os poetas começaram a contá-las em seus poemas, como esse de Ariosto; e os prosadores também; de modo que a literatura daquele tempo era só de cavalaria andante, como hoje é quase só de bandidos e policiais. Cervantes escreveu este livro para fazer graça da cavalaria andante, querendo demonstrar que tais cavaleiros não passavam duns loucos. Mas como Cervantes fosse um homem de gênio, sua obra saiu um maravilhoso estudo da natureza humana, ficando por isso imortal. Não existe no mundo inteiro nenhuma criação literária mais famosa que a sua.
"Dom Quixote não é somente o tipo do maníaco, do louco. É o tipo do sonhador, do homem que vê as coisas erradas, ou que não existem. É também o tipo do homem generoso, leal, honesto, que quer o bem da humanidade, que vinga os fracos e inocentes — e acaba sempre levando na cabeça, porque a humanidade, que é ruim inteirada, não compreende certas generosidades. Pois é isso. De tanto ler aqueles livros de cavalaria, o pobre fidalgo da Mancha ficou com o miolo mole; entendeu de virar também cavaleiro andante e sair com a velha armadura herdada de seus avós, mais a lança e o escudo, a correr mundo atrás de aventuras, isto é, atrás de outros cavaleiros andantes com quem se bater, e de maus a quem castigar. No delírio do seu sonho imaginava até a conquista de um grande reino lá pelo Oriente. Tanto imaginou aquilo que um dia se resolveu.

"Largando os livros, foi ver o cavalo que tinha na cocheira. Era um pobre cavalo, desses que por aqui chamamos matungo, e velho até não poder mais. Ossos só. Mas a imaginação desvairada de Dom Quixote via tudo ao contrário da realidade. Olhou para o feixe de ossos sem ver osso nenhum — viu um maravilhoso cavalo, igual aos mais famosos do mundo, como aquele Bucéfalo de Alexandre, o Grande, ou o Babieca do Cid."

— Que Babieca é esse, vovó? — indagou a menina.

— O Cid foi um famosíssimo herói espanhol, que a lenda pinta como o maior fazedor de proezas da Espanha. Chama-se Dom Rodrigo de Bivar. E, como um herói desse tamanho tem que ter um cavalo também heroico, apareceu o Babieca, que hoje ocupa na literatura um lugar semelhante ao de Bucéfalo. Dom Quixote olhou para o seu cavalo magro, a pensar no nome que lhe daria. Tinha de ser um nome e tanto, que ficasse famoso como o de Bucéfalo ou de Babieca. Depois de muito pensar achou um: Rocinante.

— Que quer dizer?

— Nada. Talvez a palavra venha de rocim, que hoje significa animalzinho magro, cavalinho à toa. O fidalgo achou sonoro o nome de Rocinante e com ele batizou o seu cavalo. Esse nome se tornou tão célebre no mundo inteiro que hoje quem vê um cavalo velho, magríssimo, diz logo: "Ali está um rocinante". Passou de nome próprio a nome comum.

"Muito bem. O nome do cavalo estava arranjado. Restava arranjar um bom nome para si próprio, visto que todos os cavaleiros andantes tinham lindos nomes, como o célebre Amadis de Gaula, que entre todos os cavaleiros andantes era o que Dom Quixote mais admirava. Sendo Quisana, ou Quezana, o verdadeiro nome do fidalgo da Mancha, dessa palavra tirou ele Quixote, e como fosse nascido naquela aldeia da Mancha, ajuntou ao nome Quixote o nome da Mancha. Ficou sendo Dom Quixote de Ia Mancha. Bonito, hein?

"Bem. A coisa ia indo. Restava ainda arranjar a dama dos seus amores, porque todos os cavaleiros andantes dos livros viviam loucos de amor por uma dama misteriosa, também de lindo nome, a quem juravam servir a vida inteira, proclamando-a sempre a mais bela de todas. E ai de quem duvidasse disso! Vinham logo espetadas de lanças e espadadas de abrir uma pessoa de alto a baixo. Dom Quixote pensou, pensou. Por fim, lembrou-se duma camponesa das vizinhanças, a quem andou arrastando a asa quando mais moço, chamada Aldonça. Mas Aldonça, nome muito vulgar naquele tempo, não ficava bem à grande dama dum cavaleiro andante, e ele batizou-a de Dulcineia del Toboso. Toboso era a aldeia onde morava Aldonça.

"Muito bem. Estava tudo resolvido. Tinha cavalo, tinha nome sonoro e tinha a dama dos seus amores. Só restava enfiar no corpo a armadura e partir. A armadura, velhíssima, havia pertencido a um seu bisavô. Ele remendou-a como pôde e um belo dia, pela madrugada, fez o que vocês fazem aqui, quando vão meter-se em aventuras: ergueu-se nas pontinhas dos pés sem o menor barulho para não acordar a sobrinha e a ama, e dirigiu-se à estrebaria onde encilhou Rocinante. Montou e partiu. Quando o dia rompeu, já ele estava longe da aldeia, em pleno campo deserto. Mas faltava ainda uma coisa. Os cavaleiros podem ter cavalo de nome bonito; podem ter armaduras; podem ter damas de amores — mas, antes de serem armados cavaleiros, não são cavaleiros."

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