Escrita por Monteiro Lobato
— Dom Quixote já não estava armado? — observou Emília.
— Ser "armado cavaleiro" é coisa diferente de um cavaleiro armar-se com armaduras e armas. Ser armado cavaleiro é receber o grau de cavaleiro andante, dado por outro cavaleiro. E nisso ia pensando Dom Quixote pelo caminho. Era-lhe absolutamente indispensável encontrar um cavaleiro que o armasse cavaleiro. Mas onde esse cavaleiro padrinho? Dom Quixote olhava dum lado e de outro e só via o deserto. Nem sombra de cavaleiro. Súbito, distingue ao longe um desses pobres albergues de beira de estrada muito comuns na Espanha; mas para sua imaginação sempre em fogo aquilo se afigurou imponentíssimo castelo com torres, ameias, ponte levadiça e o mais dos castelos famosos. Ótimo. Lá dentro encontraria o cavaleiro em condições de o armar cavaleiro.
"O costume no tempo dos castelos era, quando algum visitante se aproximava das suas muralhas, ser avistado por algum anão do alto das torres, o qual anão tocava uma cometa, dando aviso ao senhor de que havia gente fora. Dom Quixote deteve-se a certa distância, à espera de que soasse o toque de "cavaleiro andante à vista". Não soou coisa nenhuma, e como Rocinante, com uma fome danada, estivesse impaciente por entrar na estrebaria, Dom Quixote aproximou-se do albergue.
"Na porta estavam duas mulheres do povo — mulheres desocupadas, dessas que hoje chamam "mulheres de porta de venda". Para a sua imaginação, entretanto, pareceram formosíssimas castelãs que ali respiravam a brisa do campo. E para elas se dirigiu. Nisto ecoou no pasto atrás da casa uma buzina: tratadores de cabras que faziam soar o toque de recolher. "Ótimo!", pensou consigo o fidalgo. "O anão da torre está dando ao senhor do castelo o aviso da minha chegada" — e aproximou-se das mulheres, as quais, com medo daquela criatura tão esquisita, toda enlatada e armada, fizeram menção de fugir para dentro. Dom Quixote as sossegou com um gesto, e erguendo a viseira descobriu o rosto magro, coberto de pó."
— Que é viseira? — perguntou Narizinho.
— Viseira é a parte da armadura que recobre o rosto do cavaleiro. Uma parte móvel, que se ergue quando o enlatado deseja mostrar a cara, falar ou comer. Ergueu a viseira e disse:
"— Não vos assusteis, ó gentis donzelas, de me verdes assim armado diante dos vossos divinos olhos. Pertenço à ordem dos cavaleiros andantes, a qual manda defender as mulheres.
"As desocupadas abriram a boca, mal compreendendo tão lindas palavras. Por fim, riram-se de serem tratadas de "gentis donzelas"; riram-se indecentemente, como as desocupadas costumam rir-se, o que muito desapontou e aborreceu o fidalgo. E já ia ele censurá-las, quando surge na porta um carão redondo e vermelho. Era o dono do albergue.
"Ao ver diante de si aquele cavaleiro magro e alto, todo ferragens pelo corpo e montado num feixe de ossos, teve vontade de rir também; só não o fez de medo da lança e da carranca do desconhecido. Conteve-se e disse:
"— Ilustríssimo senhor cavaleiro, se Vossa Senhoria pretende pernoitar aqui, devo avisá-lo de que cama não há nenhuma; mas não sendo cama, tudo mais está às vossas ordens.
"Pelo tom daquelas palavras Dom Quixote deduziu estar diante do senhor do castelo em pessoa, e respondeu-lhe:
"— Por mim, senhor castelão, qualquer coisa me basta, pois que meu vestuário são as armas e meu descanso é o pelejar.
"Ao ver-se tratado de castelão, o estalajadeiro refranziu a testa, nada entendendo; mas foi tratando de levar Rocinante à estrebaria, onde o desarreou e lhe deu água e capim. Em seguida voltou a saber que mais o fidalgo ordenava. Encontrou-o já reconciliado com as duas desocupadas, que o despiam da armadura. Tiraram-lhe o peitoral, o espaldar e outras peças. Na viseira embaraçaram-se, por estar amarrada com uma fita verde na nuca.
"— É nó cego — disse uma. — Não desata. Só cortando com tesoura.
"Mas o fidalgo não consentiu que lhe cortassem um nó tão bem dado e ficou de viseira no rosto. Impossível imaginar-se figura mais cômica — ele, muito alto e magro, despido da armadura toda, exceto no rosto... Aquelas gentilezas das "castelãs" encheram-no de gamenhice, fazendo-o improvisar uns versos:
Nunca foi um cavaleiro
De damas tão bem servido
Como eu sou neste momento.
Ao chegar da minha aldeia
Donzelas cuidam de mim,
Castelãos do meu rocim. . .
"As "donzelas" nada entenderam, de tão brutas que eram, e o dono do albergue, voltando da estrebaria, disse ao fidalgo:
"— Senhor paladino, como hoje é sexta-feira, só temos por aqui bacalhau com batatas. Se Vossa Senhoria não despreza este petisco dos pobres, correrei a servi-lo.
"Dom Quixote deu a entender que para quem está morrendo de fome bacalhau é um manjar divino — o dono do albergue foi à cozinha buscar a coisa. Voltou com uma pratarrada de bacalhau com batatas, mais um pedaço de pão duro como pau, que colocou sobre a mesa sujíssima. Dom Quixote sentou-se e tentou comer. Mas comer como, com aquela ferragem na cara? Erguia a tampa da viseira; ao fazer o menor movimento com o queixo, a tampa caía e lhe fechava a boca. O remédio foi ser ajudado pelo estalajadeiro e pelas "donzelas", as quais seguraram a tampa no alto, enquanto o homem ia, com o garfo, enfiando no herói, pela fresta da ferramenta, pedaços de bacalhau e batatas. A fim de despejar lá dentro vinho, teve de empregar um funil. E o fidalgo da Mancha tudo suportava só para que não lhe bulissem na fita verde que com certeza imaginava um presente da sua Dulcineia."
— Já vi Tia Nastácia encher assim o papo dum pinto doente — observou Emília. — Mas esse pinto não era andante; não tinha viseira.
Dona Benta riu-se da asneirinha e continuou:
— Terminado o enchimento do herói da Mancha, levantou-se ele e, pegando o estalajadeiro pela mão, levou-o para a estrebaria, onde estavam suas armas. Ajoelhou-se ao lado delas, e disse:
"— Valentíssimo cavaleiro, tenho um grande pedido a fazer.
"O homem arregalou os olhos, surpreso.
"— O que desejo ardentemente — continuou Dom Quixote — é que amanhã bem cedo Vossa Senhoria me confira a ordem da cavalaria andante. E para isso, de acordo com as regras, tenho de passar a noite na capela deste alcáçar velando as armas."
— Que é alcáçar, vovó? — interrompeu Narizinho.
— É o mesmo que castelo, fortaleza. E velar as armas era uma cerimônia da cavalaria. Antes de ser armado cavaleiro, o candidato devia passar a noite diante de suas armas, velando-as.
— Quanta besteira, meu Deus! — exclamou Emília. — E ainda me chamam asneirenta. Asneirenta é a humanidade...
— Bem — exclamou Dona Benta, rindo-se. — O estalajadeiro ouviu aquilo e disse:
"— Senhor fidalgo, esse desejo é bem digno da grande alma de Vossa Senhoria e será grande prazer meu satisfazê-lo. Sim, ilustríssimo cavaleiro, eu também, quando mais moço, dei-me a altas cavalarias. Que o digam as tavernas e subúrbios da cidade de Toledo, que foram os cenários das minhas façanhas. Depois que envelheci, retirei-me para este... castelo, onde minha profissão é hospedar cavaleiros andantes. Capela para velar as armas não tenho no momento, porque mandei derrubar a que havia a fim de construir outra muito mais luxuosa. Mas Vossa Senhoria não ignora que em casos excepcionais, quando não há capela, os cavaleiros andantes podem velar as armas em qualquer lugar. Fique Vossa Senhoria aqui no pátio velando as armas, que amanhã cedo realizarei a cerimônia. Mas antes disso: Vossa Senhoria traz dinheiro?
"— Dinheiro! — exclamou Dom Quixote. — Jamais li em meus livros que os cavaleiros andantes andassem munidos do vil metal.
"O estalajadeiro torceu o focinho.
"— Peço licença para declarar que Vossa Senhoria se engana nesse ponto. Se os livros nada falam a respeito, é que julgam ser matéria tão sabida que nem merece referência. Posso afirmar a Vossa Senhoria que os cavaleiros andantes andam sempre com a bolsa bem recheada; e por isso, na qualidade de próximo padrinho de Vossa Senhoria ordeno que nunca mais corra mundo sem dinheiro, visto como o dinheiro é a vida, a alma e o sangue de tudo.
"Dom Quixote prometeu seguir o conselho e transferiu-se para o pátio, onde colocou a armadura sobre o tanque de lavar roupa, já que não podia colocá-la sobre um altar de capela. Em seguida uniu a espada ao peito, empunhou a lança e pôs-se a passear de cá para lá, de lá para cá, diante das armas ao clarão da lua. Velar as armas era aquilo.
"Uma hora mais tarde um tropeiro, também hospedado na estalagem, lembrou-se de dar água à sua mula. Veio ao pátio. Como visse aquela armadura trancando o tanque, arredou-a para que o animal pudesse beber. O fidalgo interrompeu o vaivém para berrar com voz de trovão:
"— Ó tu, quem quer que sejas, atrevido cavaleiro, não toques nessa armadura sob pena de pagares com a vida a ousadia.
"O camponês não fez caso da trovoada, ao contrário, irritou-se e jogou com toda a lataria no chão, longe dali. Ah! por que o fez? Aceso em cólera, Dom Quixote ergueu os olhos para o céu, exclamando:
"— Dulcineia, senhora minha, ajuda neste passo o teu fiel cavaleiro e arremete contra o bruto, de lança erguida qual porrete. E tamanho golpe lhe assenta no coco, que o estira. Vendo o atrevido por terra, imóvel, ajunta as armas e recoloca-as no altar do tanque. E continua de lá para cá, de cá para lá, como se nada houvesse acontecido.
"Logo depois outro tropeiro aparece no pátio para o mesmo fim e igualmente limpa o tanque daquela tranqueira. Desta vez Dom Quixote não invocou a sua Dulcineia: foi descendo a lança na cabeça do homem sem dizer água vai. O berro que ele deu fez que acudissem o estalajadeiro e mais gente do albergue. Fechou-se o tempo. Os companheiros dos dois espancados, enfurecidos, armaram-se de paus e pedras para reduzirem Dom Quixote a pedacinhos. O herói, porém, com toda a imponência, ficou de lança em riste, a esperá-los impávido — e ainda por cima os insultava de vil canalha.
"Vendo o caso mal parado, o dono do albergue acalmou os homens; mas resolveu livrar-se de Dom Quixote o mais depressa possível. Declarou-lhe não ser necessário esperar pela manhã, pois podia armá-lo cavaleiro naquele mesmo instante. E foi correndo buscar um livro e um toco de vela. O livro devia ser um livro sagrado. Como não houvesse nenhum, ele trouxe o borrador onde fazia os seus assentos diários. Também trouxe consigo as duas mulheres e um ajudante.
"— Tudo arrumado, senhor cavaleiro!
"Dom Quixote ajoelhou-se diante do padrinho, o qual rosnou, com o livro aberto, umas tantas palavras ininteligíveis; depois deu um leve golpe no pescoço do fidalgo. As duas mulheres cobriram-lhe a espada e calçaram-lhe as esporas. Pronto! Estava o grande herói da Mancha transformado num legítimo cavaleiro andante, segundo todas as regras da ordem.
"O júbilo de Dom Quixote foi intenso e imediatamente a comichão das aventuras fez-se sentir em seu corpo e em sua alma. Correu a selar Rocinante. Montou. Despediu-se do padrinho e lá partiu no galope.
"Que alívio! Embora não recebesse um vintém pela hospedagem do afilhado, o estalajadeiro deu-se por bem pago com vê-lo afastar-se dali naquela rapidez. Ufa!"