Dom Quixote das Crianças

Escrita por Monteiro Lobato

Página anterior

Capítulo 4


Terrível combate

 

— Ao sair da estalagem, convencido de que estava mesmo armado cavaleiro, Dom Quixote tocou para a sua aldeia a fim de rechear o bolso, conforme o conselho do padrinho. Ia em meio da viagem quando lhe chegaram aos ouvidos os berros de dor duma criatura humana. Os sons partiam dum bosque próximo.

"— Graças aos céus — murmurou ele — posso já no primeiro dia exercer o mais santo dever da minha nobre profissão de cavaleiro!

"Disse e cravou as esporas nos ossos de Rocinante. Num ápice estava no ponto donde vinham os gritos. Que vê lá? Um menino, assim um pouco maior que Pedrinho, amarrado a um tronco de árvore a receber uma tremenda sova de correia. A cada golpe o menino urrava e jurava:

"— Nunca mais, senhor meu amo, nunca mais o lobo me enganará! Juro por todos os santos! "Mas o patrão não queria saber de nada, e lepte! lepte!

"— Crudelíssimo cavaleiro — gritou Dom Quixote —, a ação que praticas é dum perfeito covarde. Monta no teu matungo e defende-te!

"O verdugo entreparou, olhando com olhos pasmados para aquela estranha figura de herói que assim tão de surpresa o interrompia — e teve medo da lança que Dom Quixote apontava para ele. Desculpou-se.

"— Senhor cavaleiro — disse, com humildade —, este rapaz é meu empregado, guardador de ovelhas; mas guarda-as tão mal que raro dia não me some alguma.

"— Mentira! — gritou o menino. — Ele está a bater-me porque lhe pedi a paga de seis meses de ordenado que me deve, a sete moedas cada mês.

"— Não te devo tanto assim, meu caro — contestou o patrão. — Esqueces de levar em conta que te forneci três pares de sapatos e ainda paguei as três sangrias que te fez o barbeiro quando estiveste doente.

"— Basta de discussões — disse Dom Quixote. — Desamarra o menino e paga-lhe os seis meses atrasados — e já! Os sapatos e as sangrias fiquem como indenização das injustas lapadas que lhe deste.

"— Senhor — respondeu o patrão desamarrando o menino —, dinheiro não tenho nenhum cá comigo; mas André que vá à minha casa que tudo receberá até o derradeiro vintém.

"— Nessa não caio eu! — gritou o menino. — Se ele me apanha lá, esfola-me vivo.

"— Não será assim, André — observou Dom Quixote. — Farei este cavaleiro jurar o cumprimento da promessa, e lhe concederei que vá até sua casa contigo. Respondo pelo pagamento. E fica tu sabendo que sou Dom Quixote de Ia Mancha, um cavaleiro andante que corre mundo em defesa dos inocentes.

"O patrão jurou e rejurou por todas as ordens de cavalaria existentes e por existirem, com grande satisfação do herói da Mancha, que, esporeando o magríssimo ginete, tocou para diante no galope. Assim que Dom Quixote desapareceu ao longe na curva da estrada, o malvado patrão voltou-se para o menino, dizendo:

"— Muito bem, meu rapaz, vou pagar-te os atrasados aqui mesmo, como prometi àquele cabide de ferragens que lá vai.

"— Pois está claro — tornou o bobinho. — Se não me pagar tudo quanto deve, correrei atrás dele para que volte e castigue exemplarmente o caloteiro.

"— Ótimo! — exclamou o patrão; — mas para aumentarmos a paga, acho bom aumentarmos a dívida. — Disse e nhoque! Agarrou o menino, amarrou-o novamente à árvore e — lepte! lepte! Deu-lhe tal surra que o deixou recoberto de vergões. Por fim desatou-o entre gargalhadas: — Vai agora atrás do tal defensor dos inocentes e pede-lhe que te cure o lombo. Ah, ah, ah!..."

— E o menino foi? — indagou Narizinho, danada com a brutalidade do homem.

— Ir, como? O coitadinho estava que nem podia consigo e Dom Quixote já havia dobrado a curva da estrada, muito contente consigo mesmo do ato de justiça que praticara.

— Pois eu ia — disse Pedrinho. — Fugia e saía pelo mundo até encontrar de novo Dom Quixote e trazê-lo para rachar o brutamontes de alto a baixo com a lança.

— Com a espada — emendou Emília. — Lança é só para espetar.

— Com a lança ou espada — insistiu Pedrinho. — Com essas duas armas pode-se fazer as duas coisas — rachar ou espetar.

— Não pode — contestou Emília. — Espada corta; o que corta não racha.

— Pode, sim, boba. Machado corta e racha.

— Mas lança não racha.

— Racha!

— Não racha!

— Racha!

Dona Benta interveio.

— Parem com isso e vamos à história. O menino André não foi à procura do herói da Mancha para que viesse espetar ou rachar o cruel patrão. Ficou por ali, estirado, a gemer, enquanto o carrasco, de mãos na cintura, se ria, gozando a peça.

— E Dom Quixote? — perguntou a menina.

— Dom Quixote estava longe e já com outra aventura engatilhada. Tinha visto um grupo de mercadores de Toledo que iam a comprar sedas em Múrcia, homens graúdos, bem montados em nédias mulas, com grandes guarda-sóis abertos.

— Nédias mulas quer dizer mulas ruças ou manas? — indagou Pedrinho.

— Não. Nédia quer dizer gorda, desse gordo que deixa os animais lustrosos.

— Pode-se dizer que fulana é uma moça nédia?

— Pode-se, mas é impróprio. Essa palavra se aplica quase que só aos animais.

— Mas a moça também é animal — objetou Emília. — Vegetal não é, apesar de haver moças chamadas Margarida, Violeta, Rosa, etc.

— Boba — disse Narizinho. — Quando vovó fala de animal quer dizer animal irracional, isto é, animal de rabo. Continue, vovó. Dom Quixote viu os mercadores de seda e...

— Bem — continuou Dona Benta. — Dom Quixote viu os mercadores repimpados em suas nédias mulas, de guarda-sóis abertos e seguidos de quatro capatazes a cavalo e mais três a pé. Lá consigo pensou: "Vamos ter aventura grossa!", e espetou-se no meio da estrada, à espera dos homens. Quando eles chegaram a ponto de fala, bradou-lhes com arrogância:

— Não adianteis de um só passo antes de confessardes que a mais formosa dama do mundo é a sem-par Dulcineia del Toboso.

"Surpreendidos com aquelas estranhas palavras, os mercadores entrepararam, de olhos fixos na estranha figura daquela ferragem falante. E um de língua mais solta exclamou:

"— Que raio do diabo quer esse doido com a sua vesga Dulcineia? Ora já se viu que estupor?

"O sangue subiu ao rosto de Dom Quixote.

"— Oh, infame canalha! — urrou ele. — Vou ensinar-te a respeitar a altíssima rainha da Mancha.

"Disse e investiu de lança contra o mercador de língua solta. Infelizmente o pobre Rocinante tropeçou numa pedra e afocinhou, dando com o cavaleiro em terra, onde, embaraçado pelo trambolho da armadura que tinha no corpo, mais o escudo, a lança e a espada, ficou estatelado, sem conseguir erguer-se. Mesmo assim não cessou de lançar insultos contra os seus inimigos.

"— Não fujais, covardes! Unicamente a queda do meu ginete me impede de castigar-vos pela blasfêmia proferida.

"Mas ninguém estava fugindo; ao contrário, estavam avançando. Um dos homens a pé arrancou-lhe a lança, e depois de parti-la ao joelho em dois pedaços, malhou com um deles no cavaleiro, como quem malha feijão. Por fim largou-o, indo juntar-se ao grupo já a caminho."

— Com que pedaço ele malhou? — quis saber a Emília. — Com o mais grosso ou o mais fino?

Próxima página






Deixe seu comentário


Copyright © 2015 - Todos os direitos reservados a Conta Contos
Site desenvolvido por: Conta Contos