Escrita por Monteiro Lobato
Sem responder à pergunta, Dona Benta continuou:
— Quando o pobre cavaleiro andante se viu só, com o grupo já bem longe, soltou um profundo gemido. Quis levantar-se. Impossível. Estava completamente derreado. Deixou-se então ficar onde estava, a recordar vários lances da cavalaria andante, em que o herói servira em condições ainda piores que a sua. Vieram-lhe à lembrança uns versos duma das histórias lidas.
Onde estás, senhora minha,
Que não te dói o meu mal?
Ou não o sabes, senhora,
Ou és falsa e desleal!
"Nesse ponto apareceu gente. Apareceu um homem lá da aldeia dele, que andava em compras de trigo. Vendo o cavaleiro caído, correu a socorrê-lo. Tirou-lhe a viseira e exclamou:
"— Que é isto? O Senhor Dom Quixote por aqui, neste estado? Fale! Que foi que lhe sucedeu?
"Mas não obteve resposta. O herói da Mancha perdera a fala. Vendo a gravidade do seu estado, o homem o tomou nos ombros e o arrumou dobrado em dois sobre o burrinho em que viera. Depois recolheu as armas por ali espalhadas, o escudo, o espadão, os pedaços da lança, pendurando tudo sobre a sela do Rocinante — e lá se foi para a aldeia com aquele carregamento de cacos.
"Ia caindo a noite quando parou à porta da casa de Dom Quixote, onde tudo andava de pernas para o ar desde o dia do seu desaparecimento. O pároco da aldeia e o barbeiro lá se achavam, conversando com a ama e a sobrinha.
"— Veja, senhor padre — dizia a ama —, veja que desgraça! Há já seis dias que o nosso homem desapareceu com o cavalo, a lança, o escudo e aquela ferragem da armadura do bisavô! Tudo por causa dos tais malditos livros de cavalaria, que lhe viraram a cabeça...
"— É verdade, sim — confirmou a sobrinha. — O senhor padre pode crer que o meu honrado tio passava às vezes até quarenta e oito horas seguidas agarrado a esses bolorentos livros, sem querer saber de mais nada. Só os largava para erguer-se, pegar da espada e atirar golpes contra as paredes, gritando que estavam ali torres e gigantes. E quando, já exausto, não podia mais suster a espada, bebia um copão d'água, dizendo ser o preciosíssimo elixir com que o brindara o encantador Esquife, seu amigo.
"— Fizemos mal em deixá-lo entregar-se de corpo e alma a tais livros — observou o pároco. — O melhor é queimá-los todos sem demora. Chega o dano que já causaram.
"Foi nesse ponto da conversa que soaram batidas à porta. Um criado correu a abrir, e com o maior dos espantos todos deram com a estranha carga que o homem trazia em seu burrico. A sobrinha, a ama e o cura correram de braços abertos para o reaparecido, mas Dom Quixote não estava em estado de receber abraços de ninguém; só queria cama.
"— Deitai-me já — murmurou com voz fraca —, pois estou bastante moído, por culpa de Rocinante — e chamai quanto antes uma fada que me cure.
"— Hum! — fez a ama, virando-se para o cura. — Que lhe disse eu? — E para o fidalgo em pandarecos: — Venha, venha, senhor. Nós o poremos são como um pêro, sem auxílio de fada nenhuma.
"Com muitas cautelas, os homens ali presentes puseram Dom Quixote sobre a sua macia cama. Tiraram-lhe as ferragens; examinaram-lhe o corpo em procura de ferimentos; não acharam nenhum — apenas machucaduras.
"— Eu estou é contuso — disse ele. — Numa luta contra terríveis gigantes meu cavalo veio ao chão e não pude defender-me. Moeram-me.
"— Tá, tá, tá! — exclamou o padre. — Lá vêm os gigantes! Não há remédio: temos de queimar os tais livros quanto antes.
"Foram feitas mais algumas perguntas ao herói escalavrado, mas Dom Quixote não queria saber de histórias. Só queria comer e dormir, de modo que tiveram de o deixar em paz.
"No dia seguinte, muito cedo, enquanto o fidalgo ainda estava no melhor do sono, o pároco voltou com o barbeiro. Depois de alguns cochichos com a sobrinha e a ama, foram-se todos à biblioteca, na ponta dos pés. Arrecadar os livros de cavalaria não custou muito, porque tudo lá era cavalaria — mais de cem, afora os miúdos. Foram levados para o quintal. Momentos depois uma enorme fogueira os devorava.
"— Louvado seja Deus! — exclamou a ama diante do montão de cinzas. — Pelo menos estes não mais mexerão com a bola do senhor meu amo.
"Mal acabara de dizer isso, ressoam lá dentro berros de Dom Quixote.
"— Acudi, acudi, valorosos cavaleiros! — bradava ele. — Nesse andar, os cortesãos vencem a partida!
"Todos correm para o quarto do herói, e com espanto o veem de pé, em fraldas de camisa, fazendo com a espada mil movimentos como se estivesse a bater-se contra gigantes invisíveis. O criado agarra-o pela cintura e, a custo, ajudado pelo barbeiro, domina-o, despindo-o das ferragens e deitando-o novamente. Depois que sossegou um bocado, Dom Quixote disse ao padre:
"— Ora, pois, Senhor Arcebispo Turpim, não é a maior das vergonhas que por artes do vil encantador dos Doze Pares de França a vitória deste torneio penda para os cortesãos do Imperador Carlos Magno?
"Vendo que o doente ainda estava fora do juízo, o vigário respondeu de modo a acalmá-lo, como se realmente ele, o cura, fosse o Arcebispo Turpim:
"— Oh, não se aflija com isso, Senhor Dom Quixote. O que se perde hoje ganha-se amanhã.
"— Assim o espero, senhor arcebispo — respondeu o fidalgo, suspirando — e pediu o almoço.
"A fim de cortar o mal pela raiz, o padre e o barbeiro mandaram fechar com tijolos a porta que dava para a biblioteca, de modo que ninguém desconfiasse ter havido porta ali, e foi recomendado à ama que, se ele estranhasse a ausência da porta, lhe dissesse que desaparecera por artes dum encantador.
"Três dias após, quando o fidalgo se ergueu da cama, a primeira coisa que fez foi encaminhar-se para a biblioteca em procura dos amados livros. Mas ficou atônito ao dar com uma parede contínua, sem marca nenhuma de porta. Apalpou-a, sondou, examinou. Por fim, chamou a ama.
"— E a biblioteca?
"— Sumiu, senhor — disse ela. — Enquanto meu amo esteve por fora em aventuras, um maldito mágico apareceu por cá, montado num dragão, e entrou na livraria. O que lá fez não sei. Só sei que a livralhada, e mais a sala da biblioteca, tudo desapareceu, e o mágico se sumiu pelo teto, numa fumaceira, berrando: "Sou Munhaton! Sou Munhaton!"
"— Não era Munhaton — explicou Dom Quixote. — Era Freston. Oh, conheço-o muito bem! Trata-se do mais cruel dos meus inimigos. Persegue-me porque está escrito que um dia hei de vencer na luta certo cavaleiro que Freston muito protege.
"— Ninguém duvida de semelhante coisa — observou a sobrinha, que ouvia o diálogo. — Mas diga-me, rico tio, para que anda vosmecê a amofinar-se com aventuras, quando pode estar tão sossegadinho em casa? Isso de aventuras é perigoso. Lá diz o povo que quem vai buscar lã muitas vezes volta tosquiado.
"— Cala-te! — retorquiu Dom Quixote. — Cá comigo, antes que me tosem eu os deixo pelados como leitões — e embezerrou.
"Durante uns quinze dias o herói da Mancha teve o comportamento duma criatura normal. Mas não estava curado, não. Nos seus passeios pelas vizinhanças conseguiu seduzir um pobre lavrador de cabeça fraca e alma crédula, ao qual prometeu mundos e fundos, caso quisesse acompanhá-lo em novas aventuras.
"— Sim, meu caro Sancho (Sancho Pança era o nome do lavrador). Serás meu escudeiro — e o escudeiro dum cavaleiro andante acaba sempre, no mínimo, governador d'alguma ilha.
"A palavra governador fez Sancho esbugalhar os olhos e cair em cismas. Era tentação forte, à qual não soube resistir, e lá consigo deliberou largar a mulher e os filhos para deitar-se ao mundo como escudeiro do herói da Mancha. Combinado tudo, Dom Quixote lembrou-se do conselho do seu padrinho do castelo, isto é, de munir-se de dinheiro. Vendeu mais alguma terra, empenhou o que pôde e desse modo conseguiu rechear a sua bolsa. Em seguida tratou de refazer do melhor modo a velha armadura avariada pela surra do arrieiro, depois do que ajustou com Sancho a hora e o dia da viagem. Sancho teria de prover-se dos necessários alforjes, indo montado em seu burrinho, um excelente e fiel animal. A princípio a ideia de andar à aventura seguido dum escudeiro montado em burro não agradou lá grande coisa ao fidalgo; mas por fim consentiu, lembrando-se que poderia dar a Sancho o corcel do primeiro cavaleiro encontrado pelo caminho e vencido em luta.
"Tudo bem planejado e arranjado, partiram certo dia sem que os da casa vissem; ao romper da manhã estavam já tão longe que ninguém os poderia alcançar. Sancho, com as banhas escarranchadas no jumento e os bojudos alforjes lado a lado, dava a ideia dum patriarca bonachão. Em certo momento, tomou da cabaça que trazia a tiracolo e disse, antes de sorver um gole:
"— Ah, Senhor Dom Quixote, rogo-lhe que nunca se esqueça da ilha que me prometeu. Juro governá-la com a maior sabedoria.
"— Descansa, amigo Sancho. Serei mais generoso contigo do que muitos cavaleiros de fama o foram com seus servidores. Costumavam deixá-los envelhecer sem nunca os galardoar com a merecida recompensa. Quando muito lhes davam alguma província e um reles título de conde ou marquês. Eu, porém, em menos de seis dias espero conquistar todo um reino — ou dois, e este segundo será teu.
"— Oh, meu querido amo! — exclamou o escudeiro batendo palmas, aos pulos na sela. — Quer dizer então que ainda serei rei e a minha mulher Teresa, rainha e meus filhos, príncipes?
"— Está claro — confirmou Dom Quixote.
"Mas Sancho pôs-se a rir. Estava a pensar na sua mulher.
"— Coitada! — exclamou. — Ainda que chovam coroas, creio que nenhuma se ajustará na cabeça da pobre Teresa. Não dá para rainha, não, a coitada... Condessa ainda vá lá; mas rainha...
"— Não te preocupes com isso, Sancho. Tudo se há de resolver do melhor modo. Neste momento o que posso assegurar-te é que receberás um reino.
"— Os anjos digam amém — murmurou Sancho com os olhos no céu. — Eu cá de mim fico sossegado, porque sei que palavra de cavaleiro não volta atrás. Inda mais a palavra do maior cavaleiro da Mancha, o meu valorosíssimo amo..."