Escrita por Monteiro Lobato
Dona Benta parou nesse ponto porque já era tarde — nove horas, hora de cama. Os meninos foram dormir e sonharam com as aventuras narradas. O melhor sonho foi o da Emília, que ela contou no dia seguinte.
— Ah, vocês nem calculam a sova que eu dei no tal malvado patrão de André! Ele apareceu por aqui, com aquela cara lavada de sem-vergonha.
"— Senhorita, poderá fazer o obséquio de dizer-me se é aqui o sítio de Dona Benta? — perguntou muito amável.
"Eu, que sabia a malvadeza dele, fiz-me de tola.
"— É, sim, seu cara-de-coruja. Que deseja Vossa Senhoria?
"— Vim ver se não está escondido por aqui um tal Andrezinho, um menino que eu quero muito, muito, muito bem! De medo dum doido vestido de armadura que anda a correr as estradas, ele fugiu-me lá do meu sítio e...
"— Ah, sei — disse eu. — Um tal Dom Quixote, não é? Um cavaleiro malvado que corre mundo a surrar crianças, não é?
"O homem desconfiou um bocadinho. Eu continuei:
"— Está aqui, sim. Está escondidinho no quintal, de medo do tal cavaleiro de ferro que bate nas crianças. Vamos até lá.
"E levei-o ao quintal, onde Quindim estava pastando sossegadamente. O homem nunca tinha visto rinoceronte. Assustou-se.
"— Que é aquilo? Aquele monstro?
"— Não tenha medo — respondi. — É um rinoceronte de mentira que Pedrinho fez. De papelão. Não chifra.
"— Mas como está pastando? — perguntou ele.
"— Está pastando de mentira, bobo. Tudo é de mentira. Pedrinho é um danado para fazer coisas assim.
"O homem acreditou e foi se aproximando do Quindim. E eu:
"— O Andrezinho está escondido atrás desse bicho de papelão.
"Ele foi chegando, chegando. . . De repente, gritei:
"— Pega, Quindim! — E Quindim deu um daqueles botes famosos — com o chifrão apontado, feito lança de Dom Quixote.
"Nossa Senhora! Queria que vocês ouvissem o berro que o homem deu! Saiu numa disparada que mais parecia veado. Na porteira do pasto tropicou numa pedra e fez o mesmo que Rocinante: afocinhou. Rachou o nariz. E Quindim em cima, fuqt fuqt, espetando-o com o chifre. E eu cá a berrar..."
— Espere, Emília — disse Narizinho. — Esse sonho está muito bem arranjado para ser verdadeiro. O que você está fazendo é nos tapear com uma das suas lorotas.
Nesse momento entrou Dona Benta, que vinha continuar a história. Sentou-se e disse:
— Muito bem. Onde ficamos ontem?
— Dom Quixote estava outra vez na estrada, em companhia de Sancho, conversando sobre a ilha — lembrou Pedrinho.
— Isso mesmo — disse Dona Benta. — Estavam a conversar sobre a futura ilha de Sancho, quando o herói viu ao longe uns vinte ou trinta moinhos de vento.
"— Sancho, meu caro Sancho! — bradou Dom Quixote. — A fortuna começa a favorecer-nos. Não vês lá ao longe aquele exército de gigantes?
"— Gigantes? — repetiu o escudeiro voltando-se para todos os lados. — Não vejo nem sombra de gigantes, senhor...
"— Aquilo, acolá — disse Dom Quixote, com o magro dedo apontado.
"— Oh, senhor! Aquilo nunca foi exército de gigantes. Não passa duns tantos moinhos de vento. Nada mais.
"— São gigantes, sim — insistiu o herói; — vou combatê-los. Depois de derrotados, ficaremos com os despojos. Ajoelha-te, Sancho, e reza enquanto dou cabo dos monstros — e, sem esperar resposta, cravou as rosetas nos ossos de Rocinante, partindo aos berros: — A mim! A mim, covardes ladrões! Eu sozinho, com esta lança, vos reduzirei a trapos.
"O vento nesse instante aumentou, de modo que as asas dos moinhos começaram a girar com maior rapidez. "— Virai esses braços quanto quiserdes! — berrava Dom Quixote. — Ainda que tivésseis mais braços que o gigante Briareu, do mesmo modo eu vos reduziria a trapos.
"Estava já perto. Enristou a lança e atacou o moinho mais próximo, espetando o ferro numa das asas — e o que sucedeu foi algo espantoso. A asa em movimento colheu cavaleiro e cavalo e os arremessou para longe, em pandarecos.
"Ao ver o desastre, Sancho, que ficara a rezar, esporeia o burro. Corre em socorro do amo. Encontra-o por terra, estirado, imóvel.
"— Eu bem disse, meu amo, que os vultos eram moinhos e não gigantes. O meu amo não me deu crédito — agora está aí escangalhado, a gemer...
"— Cala-te, Sancho — respondeu Dom Quixote —, pois as coisas da guerra, mais que quaisquer outras, estão sujeitas às mudanças e aos caprichos da fortuna. Fica tu sabendo, Sancho, que o meu mais cruel inimigo é o terrível encantador Freston. Já me roubou a livraria; agora, para me tirar a honra de vencer estes gigantes, transformou-os em moinhos. Paciência. Haja o que houver, a minha fiel espada tem que vencer no fim — e Freston será castigado.
"— Amém! — tornou o escudeiro, e ajudou o moído amo a repimpar-se sobre o pobre Rocinante, que mal podia aguentar-se de pé.
"O pior foi a lança do cavaleiro ter-se partido em três pedaços — e um cavaleiro sem lança perde o jeito. Isso provocou no herói da Mancha as seguintes considerações:
"— Certa vez um grande paladino espanhol, de nome Diogo Peres, quebrando a espada numa briga, arrancou um tronco de carvalho e com ele destroçou tal quantidade de mouros que recebeu a alcunha de Diogo Machuca, nome com que mais tarde se honraram todos os seus descendentes. Vou fazer o mesmo. Afeiçoarei com as minhas próprias mãos uma nova lança, com a qual assombrarei os mundos.
"— Assim o permita Deus! — exclamou Sancho, com os olhos postos na figura alquebrada do cavaleiro, atitude que lhe causava má impressão. — Senhor meu amo, acho bom que se endireite um pouco mais na sela. Quem o vir assim há de jurar que é corcunda...
"— Confesso-te, Sancho, que esta queda me achatou bastante; e se não me queixo, nem gemo as dores que sinto, é que um cavaleiro não deve jamais queixar-se, nem gemer, ainda que lhe ponham todas as tripas de fora.
"— Oh — exclamou Sancho —, está aí uma coisa que eu jamais faria. Não sei resistir. Ao menor arranhão, berro e gemo que nem cachorrinho novo ao qual cortam a cauda. Mas, diga-me, senhor, não acha que sejam horas de cuidar da pança?
"— Come tu, meu Sancho. Come tu, já que tens fome. Eu não careço de alimento.
"O escudeiro não acreditou muito naquilo; mas em vez de contrariar o amo, cruzou uma perna sobre o cabeço da sela, abriu um dos alforjes, sacou de dentro parte do que havia e foi enchendo o bucho. Também não se esqueceu da cabaça de vinho, que ficou muito mais leve."