
Escrita por Monteiro Lobato
— Por isso é que ele era tão gordinho — observou a menina. — Esse Sancho, aqui nos desenhos, parece um chouriço. O que quer é comer, comer, comer. Só não entendo uma coisa. Dom Quixote tinha a bola virada; era pois natural que visse fantasmas e gigantes de todos os lados. Mas Sancho? Como é que não tendo a bola virada seguia o cavaleiro por toda parte?
— Sancho — respondeu Dona Benta — era uma criatura de bom senso, sem nada de louco, mas um tanto simplório e espertalhão. Seguia Dom Quixote por interesse. Primeiro, a ilha; depois, coisinhas que pudesse ir pegando pelo caminho. As aventuras tinham de lhe render alguma coisa, disso estava ele certo.
— Sova, rendia! — observou a boneca. — Estou vendo que esse Dom Quixote é o que Tia Nastácia chama armazém de pancadas. As suas aventuras ainda estão no começo e quantas tundas já não recebeu?
— Lá isso é verdade — concordou Dona Benta. — Se vocês lerem a história inteira de Dom Quixote, irão repassar um rosário de sovas que não acaba mais — não só que ele dava nos outros, como as que apanhava. E se Sancho ia pilhando coisas aqui e ali, também levava suas doses de pau muito bem malhado.
— Mas não havia de doer — disse Emília. — Ele era acolchoadinho de banhas. Eu não tenho dó de gente gorda que apanha. De gente magra, sim. Os gordos hão de ser como bonecos de borracha. Não há meio de quebrar lá dentro osso nenhum. As banhas acolchoam os ossos.
— Bem, bem — murmurou Dona Benta. — Continuemos. Os dois aventureiros iam de rumo a um lugar chamado Porto Lápice, zona onde esperavam muitas aventuras; e a esperarem aventuras se passou o dia. Ao cair da noite detiveram-se num bosque onde o fidalgo da Mancha procurou, achou e cortou uma grossa vara que lhe servisse de lança. Ajeitou-a convenientemente e com ela encabou o ferro pontudo. Nisso anoiteceu. Sancho acomodou-se, e logo dormiu, como se estivesse em colchão de plumas. Já o fidalgo não pôde pregar o olho. A noite inteira passou-a com o pensamento na amada Dulcineia.
"Lá pela madrugada, bradou:
"— Acorda, Sancho, que são horas de partir.
"— Sim, meu senhor, sim, meu senhor — respondeu o escudeiro estremunhando, esfregando os olhos e escancarando a boca em bocejos.
"Mas o melhor meio de espantar duma vez o sono era a cabaça — e, indo-se à dita, o escudeiro bebeu tantos goles que a deixou levezinha. Depois tratou de encher o estômago. Comeu, comeu, comeu. Dom Quixote, porém, não quis almoçar. Positivamente vivia de brisas. Logo se puseram a caminho e não tardou muito que vissem sinais de Porto Lápice perto.
"— É por aqui, meu amigo — observou o herói da Mancha — que poderemos atolar-nos até as orelhas nisso que chamam aventuras. Cumpre-me, portanto, avisar-te de uma coisa: nunca deves tomar a espada para defender-me por maior perigo que eu corra, salvo se os atacantes forem gente baixa ou canalha vil. Contra cavaleiro, só cavaleiro.
"— Fique descansado, senhor meu amo — respondeu Sancho. — Juro que lhe obedecerei fielmente. Bem sabe que sou de natureza pacífica e tenho horror a combates e barulhos. Mas se alguém me assentar a mão, ah, prego-lhe a catana. Isso, prego-lhe!
"— E farás muito bem — apoiou o cavaleiro. — Mas, quem vem lá?
"Eram dois frades beneditinos, repimpados em mulas bem tratadas. Traziam guarda-sóis abertos e óculos no nariz. Atrás vinha uma carruagem seguida de quatro ou cinco homens a cavalo e dois a pé. Nessa carruagem viajava uma dama da Biscaia que ia ao encontro do seu marido em Sevilha. Os frades não faziam parte da comitiva da grande dama.
"— Opa! — exclamou Dom Quixote. — Ou muito me engano, ou temos famosíssima aventura. Estás vendo, Sancho, aqueles vultos negros? Pois são dois perversos encantadores que roubaram alguma princesa e a levam naquela carruagem. Haja o que houver, tenho de tirar isso a limpo.
"— Mau, mau, mau, senhor! — exclama Sancho. — Não vê Vossa Senhoria que são apenas dois frades e que a dama da carruagem não passa de simples viajante?
"Mas Dom Quixote, já a preparar-se para o assalto, a nada atendia. Nem ouviu os últimos gritos do escudeiro: — Meu senhor, meu senhor, não são feiticeiros, apenas gente do comum! — Sua espora fincou-se na ilharga de Rocinante e lá se foi ele na disparada.
"— Alto aí, satélites de Barzabu! — berrou ao chegar o grupo. — Soltai já essa maravilhosa princesa que tendes presa na carruagem ou vos farei em picado.
"— Senhor cavaleiro — respondeu humildemente um dos frades — não somos satélites de coisa nenhuma, sim religiosos da ordem de São Bento, que seguimos o nosso destino. Nada sabemos de princesas presas em carruagens.
"— Basta de mentiras, ó infame canalha! Conheço-os perfeitamente. A mim! — e arremeteu, furioso, de lança no sovaco.
"Ao ver aquele ferro de lança apontado em sua direção, o frade lançou-se da mula abaixo, enquanto o companheiro fugia a galope para longe dali. Mal viu o primeiro frade por terra, Sancho correu a despojá-lo.
"Nisto chegam os homens da carruagem e o acusaram de estar no saque daquele monge, ao qual até a batina queria arrancar.
"— Ah, ah, ah! — riu-se o escudeiro. — Acusação mais asnática nunca vi. Pois não sabem que quando um cavaleiro andante vence o inimigo, os despojos pertencem ao escudeiro do vencedor? O Senhor Dom Quixote, meu amo, venceu esta batalha; logo, os despojos são meus.
"— Sim? — exclamaram ironicamente os homens. — Pois então leve mais isto — e descarregaram-lhe no lombo tal dose de coices, trancos e pauladas, que o deixaram no chão, a gemer lastimosamente.
"O frade caído aproveitou-se do incidente para erguer-se, montar e voar ao encontro do companheiro. Enquanto isso Dom Quixote, rente à portinhola da carruagem, murmurava elegantemente para a dama:
"— Já Vossa Alteza não está mais cativa, minha senhora. Meu poderoso braço acaba de punir o atrevimento dos roubadores, e como é justo que Vossa Alteza queira conhecer o nome do seu libertador, aqui o proclamo: sou Dom Quixote de Ia Mancha, o cavaleiro andante.
"Um dos biscainhos, que seguiam a carruagem e estivera a ouvir, achou demais a loucura e avançando para o herói segurou-lhe a lança, berrando:
"— Vai-te já daqui, cavaleiro, que senão, pelo Deus que me criou, racho-te ao meio, não fosse eu biscainho.
"— Miserável! — exclamou Dom Quixote. — Se foras de fato cavaleiro, já terias experimentado a violência do meu braço.
"— Sou cavaleiro, sim! — replicou o homem. — Sou fidalgo biscainho! Põe-te em guarda, diabo! Hei de cortar-te a orelha. Vamos! Larga a lança e puxa a espada!
"Dom Quixote nada responde. Larga a lança. Ajeita o escudo e com a espada investe contra o biscainho, como gavião sobre pomba. Mas o homem teve tempo de tomar uma das almofadas da carruagem para lhe servir de escudo, e também de sacar o facão — e ataca. Desfere contra o herói da Mancha tal golpe que por um triz não o abre meio a meio. Por felicidade a lâmina pegou-lhe a cabeça de lado, resvalando pelo ombro e fazendo vir por terra parte do elmo, as peças guarnecedoras do peito com um pedaço de orelha.
"Dom Quixote soltou um berro de atroar e exclamou:
"— Senhora minha, ajuda-me neste rude passo! — e erguendo com ambas as mãos a pesadíssima espada, assentou um tremendíssimo golpe na cabeça do adversário.
"O sangue jorra da boca, do nariz e das orelhas do biscainho, cujos braços descaem. Perde ele os estribos. Sua mula espanta-se, pula, escouceia e com uns corcovos deita-o em terra. Dom Quixote, já a pé, encosta-lhe a ponta da espada no gasnete, berrando: — Rende-te, miserável!
"O pobre homem estava sem fala; nada pôde responder; e o herói da Mancha certamente o espetaria se a dama da carruagem não acudisse, intercedendo pelo vencido.
"— Concedo-lhe a vida — respondeu Dom Quixote imponente de orgulho — já que Vossa Alteza mo pede; mas sob a condição de que vá a Toboso apresentar-se à sem-par Dulcineia para que a formosa das formosas determine o que lhe parecer conveniente.
"A aflitíssima dama, ansiosa por ver-se livre de tamanho louco, prometeu que faria o biscainho cumprir a ordem dada. E tratou de raspar-se dali. Ufa! Que susto!"